Resenha: A filha primitiva - Vanessa Passos

 

 

A filha primitiva por [Vanessa  Passos, Giovana Madalosso, Natalia Timerman]   Obra: A filha Primitiva

   Autora: Vanessa Passos

   Número de páginas: 76

Sinopse:
    Um história de amor e ódio, violência e redenção. Ambientada em Fortaleza, A filha primitiva traz luz e sombra para uma geração de mulheres: avó, mãe e filha – unidas pela dor e pelo abandono, separadas pela fé, pelo ceticismo e pelos segredos que guardam. Uma avó negra que esconde quem é o pai da filha. Uma mãe branca que escreve para preencher as lacunas de sua vida e rejeita a maternidade. Um filha que recebe a raiva de mãe para filha e já nasce sentindo a dor de ser mulher. Uma ficção imersa numa crueza de linguagem e calcada no real que transforma uma história de ancestralidade em grande literatura.




    Oi, pessoal! Hoje eu trago a resenha desse livro incrível que li" A filha Primitiva" é uma obra que vai te fazer se sentir dividido com o que acontece com as personagens, é impossível não ser tocado por essa história. 
    Temos aqui mãe, filha, e avó.  A filha que busca respostas sobre o pai, mas sua mãe se nega a lhe oferecer qualquer informação, enquanto isso ela está se acostumando a também aceitar as mudanças que  o nascimento de sua filha trouxeram. 

    Vanessa Passos em seu primeiro romance retratou com maestria  a relação complexa entre mãe e filha, e a consequência desse sentimento de desamparo é uma mescla de amor e rancor.  Mais do que apenas mostrar o que é a maternidade real, aqui a gente analisa a importância da ancestralidade em nossas vidas, o quanto é importante entender a si mesmo, conhecer as suas raízes para enfim poder desempenhar melhor nosso papel em nossa existência. A autora trabalha  as dores de uma mulher que está em busca de respostas sobre seu passado e somente assim estará completa para prosseguir com a sua jornada e se sentirá mais pronta para ser uma mãe melhor.

    "As enfermeiras não têm pena da gente. Talvez porque nunca tenham parido na vida ou porque já tenham visto partos demais".

 

     Achei muito interessante que logo no começo da história a autora já faz a gente refletir sobre esse tema. Muitas mulheres sofreram violência obstétrica nos hospitais e isso criou nelas um trauma muito grande. Apesar de eu de ter feito meu parto em convênio de saúde ainda assim sofri um pouco com o descaso, com a falta de empatia e cuidado humano nesse momento. Acabava de sair de uma cesariana, mal aguentava ficar de pé e fui deixada sozinha para tomar banho sem nenhuma supervisão, se caso eu caísse e abrisse meus pontos o que teria acontecido comigo? Eu ainda me lembro da dor que senti por causa da cirurgia e do medo que tive de me machucar ali. Então a gente vê no livro que nos hospitais públicos já não tem muita assistência a gestante ou recém- mãe, mas digo por experiência no plano de saúde as coisas também não são flores, é um pouco menos pior. 

     A protagonista é  professora de literatura, e se divide entre o trabalho e a nova realidade que enfrentam em sua vida sem a ajuda de um parceiro, apenas conta com a mãe que de vez em quando se fecha em seu casulo e não lhe deixa penetrar nas suas camadas confusas, estranhas e enigmáticas. 

    No livro as mulheres não tem nomes, uma estratégia interessante e intrigante utilizada pela escritora. A filha  sofre preconceito por ser mãe solteira, tem que lidar com as críticas o tempo todo sobre quando devia parar de amamentar ou pelo fato de ter estrias, o que também fez eu me identificar porque passei por essa parte de enfrentar um milhão de pitacos, mesmo tendo o pai da criança perto, ainda assim enfrentei  a maior parte sozinha com fé, terapia e paciência para lidar com a maternidade romantizada e solitária que despencou na minha vida.  

    Me venderam um mundo maternal cor de rosa, mas esqueceram de explicar o lado obscuro dela, e eu tive que aprender a duras penas a vencer as crises de ansiedade e de pânico enquanto acalentava minha filha para dormir.  É por isso que hoje uma das minhas pautas na escrita é mostrar a maternidade real para que outras mulheres como eu se sintam abraçadas, que entendam que a maternidade é linda, é uma aventura, mas que também tem partes doloridas e cada mulher tem seu tempo para superar tudo isso, lidar com o caos da maternidade as ensinará a ter resiliência nessa nova empreitada. Então desde já eu parabenizo a autora por essa coragem e ousadia em falar dessa temática.

    Após esse adendo vamos voltar a história, estamos no dia da consciência negra, e não podia ter escolhido melhor obra pra falar sobre esse tema tão importante. Notamos que a mãe  da protagonista repete que branco é sempre igual e que ela preferia não revelar quem era o pai da menina, o que nos deixa afoitos porque se era uma diarista e sofreu no emprego, a gente acaba criando algumas teorias sobre isso, aliás, esse é o outro tema que a autora trouxe e que nos faz pensar, pois há muitas mulheres diaristas sofrendo assédio de todos os tipos no trabalho, essa é uma triste realidade e pior ainda é quando acham que por uma mulher ser negra ela tem obrigação de fazer o que o patrão mandar, sendo que muitas coisas estão além do que realmente foi contratada pra fazer, o que mostra o racismo ainda muito presente. No passado as amas de leite eram obrigadas a se deitar com os patrões donos de fazendas, cafezais, etc. As escravas sofriam demais, mas o tempo passou, as coisas mudaram, mas alguns pensamentos retrógrados ainda ficaram.

"Minha mãe teve crise de pânico depois que o patrão gritou com ela. Não era comigo que ela conversava, era consigo, com essa mulher a quem nunca me permitiu ter acesso e conhecer de verdade". 

 

    Além das crises de pânico na mãe da personagem não é difícil perceber que ela sofre de estresse pós-traumático porque só alguém preso a um looping na mente com lembranças traumáticas sente a mesma dor cada vez que se lembra do fato, o que é triste demais e a filha fica desesperada sem saber como ajudar a sua mãe. Vanessa conseguiu mostrar sem receio um tema nem sempre bem explorado dessa maneira como ela fez,  evidenciando o sofrimento devido a violência, desigualdade, a fome,  as dores humanas, e pelas lutas sociais de forma real e ao mesmo tempo sensível, tudo de maneira muito fluída na história.   

    Filha Primitiva desnuda a realidade da vida, aqui não tem casal fofo, história mamão com açúcar, aqui a gente ver a vida como é, relações complicadas, traumas, o problema causado pelo vício em álcool e como isso detona um relacionamento muitas vezes, especialmente se o parceiro não quer sair daquilo.

     Esse livro é fantástico, é um dos livros que realmente me despertou muitas emoções e reflexões, eu gosto muito quando isso acontece, quando a obra me bota contra a parede, me faz repensar meus conceitos, traz a minha mente uma metamorfose, me fez evoluir como ser humano.  É esse o tipo de livro que me marca profundamente e nunca mais vou esquecer as sensações que ele me causou. Livros assim são transformadores.

    " Minha mãe é  uma daquelas personagens que a gente odeia e, ainda assim, não consegue deixar de acompanhar. À primeira vista, uma pessoa simples, uma pessoa simples, negra, analfabeta, trabalhava em cada de família, sem muitos anseios e pretensões. Olhando assim dava até pra sentir pena dela, mas na literatura e na vida nada é o que parece. Essa mesma mulher que chamo de mãe me escondia a vida toda a minha origem".
    Nesse processo de redescoberta a filha começa a  buscar o autoconhecimento por meio das palavras, ela  pratica a arte da escrita cada vez mais e nisso dá um passo em direção a nova mulher que ela se tornou depois que foi mãe. Ela reflete sobre tudo que a gente perde quando nos tornamos mães. Esse foi outro momento em que me identifiquei com a personagem porque também vivi quando fui mãe. A escrita que sempre foi terapêutica e um hobby para mim, agora se tornava ainda mais a minha boia pra não me afogar no meu caos interior naquele momento tão confuso e difícil.

    Foi nesse momento pós parto que eu abri este blog, e ele me ajudou muito a me sentir útil novamente, a ter um novo propósito porque a gente precisa normalizar que nem toda mulher nasceu pra ser mãe integral, nem toda mulher nasceu pra só ficar dentro de casa e estar feliz assim, além disso, a gente precisa aprender a acolher as mulheres ao invés só julgar com base na sua própria experiência. 

    Eu senti esse mesmo de julgamento semelhante ao da personagem, parece que a mulher e mãe que almeja uma carreira tem que ser crucificada diante da sociedade, é como se as pessoas ainda vivessem com pensamentos antigos. A mãe que quer trabalhar, ter sua profissão não tem que se sentir culpada  por isso, ela é tão mãe quanto a que fica em casa apenas. E tá tudo bem fazer essas escolhas. Acho muito bom livros que debatem sobre isso porque é algo que me incomoda bastante hoje em dia. 

    "Pouca coisa sobra da gente depois da maternidade... Ficar em casa seria sempre gatilho pra solidão. Não esqueço as minhas cicatrizes. Talvez o desejo de escrever e criar histórias tenha surgido porque eu nunca tive a chance de conhecer a minha verdade... Vou me descobrindo enquanto escrevo, quando puxo de dentro uma palavra depois da outra, sem sentido lógico as palavras continuam vindo"
   

    Escrever é semelhante a um parto que não acaba,  "sai letra por letra, dói parir palavras, dói mais ainda viver com elas dentro", essa frase do livro achei brilhante porque a escrita de fato é um processo moroso, difícil, cansativo, doloroso às vezes. É preciso paciência com nosso processo, com nosso trabalho e com os fatores externos a ele e que podem nos influenciar e prejudicar nossa criatividade.   E no final a gente vê que todo processo valeu a pena quando nossa obra está pronta.

    A obra trata de violência doméstica, violência sexual, abandono parental,  mostra bem os estimas vividos pela mulher na sociedade. Eu amei esse livro e super recomendo a todos que leiam. Ele é maravilhoso É a realidade nua e crua escancarada em pudor, sem tabu e de  um jeito muito envolvente e ao mesmo trazendo críticas a coisas importantes.

    Leiam Filha Primitiva, ele vai mexer muito com vocês.

Até a próxima!  

    




 



Nenhum comentário