Obra: A filha Primitiva
Número de páginas: 76
Sinopse:
"As enfermeiras não têm pena da gente. Talvez porque nunca tenham parido na vida ou porque já tenham visto partos demais".
Achei muito interessante que logo no começo da história a autora já faz a gente refletir sobre esse tema. Muitas mulheres sofreram violência obstétrica nos hospitais e isso criou nelas um trauma muito grande. Apesar de eu de ter feito meu parto em convênio de saúde ainda assim sofri um pouco com o descaso, com a falta de empatia e cuidado humano nesse momento. Acabava de sair de uma cesariana, mal aguentava ficar de pé e fui deixada sozinha para tomar banho sem nenhuma supervisão, se caso eu caísse e abrisse meus pontos o que teria acontecido comigo? Eu ainda me lembro da dor que senti por causa da cirurgia e do medo que tive de me machucar ali. Então a gente vê no livro que nos hospitais públicos já não tem muita assistência a gestante ou recém- mãe, mas digo por experiência no plano de saúde as coisas também não são flores, é um pouco menos pior.
A protagonista é professora de literatura, e se divide entre o trabalho e a nova realidade que enfrentam em sua vida sem a ajuda de um parceiro, apenas conta com a mãe que de vez em quando se fecha em seu casulo e não lhe deixa penetrar nas suas camadas confusas, estranhas e enigmáticas.
No livro as mulheres não tem nomes, uma estratégia interessante e intrigante utilizada pela escritora. A filha sofre preconceito por ser mãe solteira, tem que lidar com as críticas o tempo todo sobre quando devia parar de amamentar ou pelo fato de ter estrias, o que também fez eu me identificar porque passei por essa parte de enfrentar um milhão de pitacos, mesmo tendo o pai da criança perto, ainda assim enfrentei a maior parte sozinha com fé, terapia e paciência para lidar com a maternidade romantizada e solitária que despencou na minha vida.
Me venderam um mundo maternal cor de rosa, mas esqueceram de explicar o lado obscuro dela, e eu tive que aprender a duras penas a vencer as crises de ansiedade e de pânico enquanto acalentava minha filha para dormir. É por isso que hoje uma das minhas pautas na escrita é mostrar a maternidade real para que outras mulheres como eu se sintam abraçadas, que entendam que a maternidade é linda, é uma aventura, mas que também tem partes doloridas e cada mulher tem seu tempo para superar tudo isso, lidar com o caos da maternidade as ensinará a ter resiliência nessa nova empreitada. Então desde já eu parabenizo a autora por essa coragem e ousadia em falar dessa temática.
Após esse adendo vamos voltar a história, estamos no dia da consciência negra, e não podia ter escolhido melhor obra pra falar sobre esse tema tão importante. Notamos que a mãe da protagonista repete que branco é sempre igual e que ela preferia não revelar quem era o pai da menina, o que nos deixa afoitos porque se era uma diarista e sofreu no emprego, a gente acaba criando algumas teorias sobre isso, aliás, esse é o outro tema que a autora trouxe e que nos faz pensar, pois há muitas mulheres diaristas sofrendo assédio de todos os tipos no trabalho, essa é uma triste realidade e pior ainda é quando acham que por uma mulher ser negra ela tem obrigação de fazer o que o patrão mandar, sendo que muitas coisas estão além do que realmente foi contratada pra fazer, o que mostra o racismo ainda muito presente. No passado as amas de leite eram obrigadas a se deitar com os patrões donos de fazendas, cafezais, etc. As escravas sofriam demais, mas o tempo passou, as coisas mudaram, mas alguns pensamentos retrógrados ainda ficaram.
"Minha mãe teve crise de pânico depois que o patrão gritou com ela. Não era comigo que ela conversava, era consigo, com essa mulher a quem nunca me permitiu ter acesso e conhecer de verdade".
Além das crises de pânico na mãe da personagem não é difícil perceber que ela sofre de estresse pós-traumático porque só alguém preso a um looping na mente com lembranças traumáticas sente a mesma dor cada vez que se lembra do fato, o que é triste demais e a filha fica desesperada sem saber como ajudar a sua mãe. Vanessa conseguiu mostrar sem receio um tema nem sempre bem explorado dessa maneira como ela fez, evidenciando o sofrimento devido a violência, desigualdade, a fome, as dores humanas, e pelas lutas sociais de forma real e ao mesmo tempo sensível, tudo de maneira muito fluída na história.
Filha Primitiva desnuda a realidade da vida, aqui não tem casal fofo, história mamão com açúcar, aqui a gente ver a vida como é, relações complicadas, traumas, o problema causado pelo vício em álcool e como isso detona um relacionamento muitas vezes, especialmente se o parceiro não quer sair daquilo.
Esse livro é fantástico, é um dos livros que realmente me despertou muitas emoções e reflexões, eu gosto muito quando isso acontece, quando a obra me bota contra a parede, me faz repensar meus conceitos, traz a minha mente uma metamorfose, me fez evoluir como ser humano. É esse o tipo de livro que me marca profundamente e nunca mais vou esquecer as sensações que ele me causou. Livros assim são transformadores.
" Minha mãe é uma daquelas personagens que a gente odeia e, ainda assim, não consegue deixar de acompanhar. À primeira vista, uma pessoa simples, uma pessoa simples, negra, analfabeta, trabalhava em cada de família, sem muitos anseios e pretensões. Olhando assim dava até pra sentir pena dela, mas na literatura e na vida nada é o que parece. Essa mesma mulher que chamo de mãe me escondia a vida toda a minha origem".Nesse processo de redescoberta a filha começa a buscar o autoconhecimento por meio das palavras, ela pratica a arte da escrita cada vez mais e nisso dá um passo em direção a nova mulher que ela se tornou depois que foi mãe. Ela reflete sobre tudo que a gente perde quando nos tornamos mães. Esse foi outro momento em que me identifiquei com a personagem porque também vivi quando fui mãe. A escrita que sempre foi terapêutica e um hobby para mim, agora se tornava ainda mais a minha boia pra não me afogar no meu caos interior naquele momento tão confuso e difícil.
Foi nesse momento pós parto que eu abri este blog, e ele me ajudou muito a me sentir útil novamente, a ter um novo propósito porque a gente precisa normalizar que nem toda mulher nasceu pra ser mãe integral, nem toda mulher nasceu pra só ficar dentro de casa e estar feliz assim, além disso, a gente precisa aprender a acolher as mulheres ao invés só julgar com base na sua própria experiência.
Eu senti esse mesmo de julgamento semelhante ao da personagem, parece que a mulher e mãe que almeja uma carreira tem que ser crucificada diante da sociedade, é como se as pessoas ainda vivessem com pensamentos antigos. A mãe que quer trabalhar, ter sua profissão não tem que se sentir culpada por isso, ela é tão mãe quanto a que fica em casa apenas. E tá tudo bem fazer essas escolhas. Acho muito bom livros que debatem sobre isso porque é algo que me incomoda bastante hoje em dia.
"Pouca coisa sobra da gente depois da maternidade... Ficar em casa seria sempre gatilho pra solidão. Não esqueço as minhas cicatrizes. Talvez o desejo de escrever e criar histórias tenha surgido porque eu nunca tive a chance de conhecer a minha verdade... Vou me descobrindo enquanto escrevo, quando puxo de dentro uma palavra depois da outra, sem sentido lógico as palavras continuam vindo"
Escrever é semelhante a um parto que não acaba, "sai letra por letra, dói parir palavras, dói mais ainda viver com elas dentro", essa frase do livro achei brilhante porque a escrita de fato é um processo moroso, difícil, cansativo, doloroso às vezes. É preciso paciência com nosso processo, com nosso trabalho e com os fatores externos a ele e que podem nos influenciar e prejudicar nossa criatividade. E no final a gente vê que todo processo valeu a pena quando nossa obra está pronta.
A obra trata de violência doméstica, violência sexual, abandono parental, mostra bem os estimas vividos pela mulher na sociedade. Eu amei esse livro e super recomendo a todos que leiam. Ele é maravilhoso É a realidade nua e crua escancarada em pudor, sem tabu e de um jeito muito envolvente e ao mesmo trazendo críticas a coisas importantes.
Leiam Filha Primitiva, ele vai mexer muito com vocês.
Até a próxima!
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